O Urso e o Caçador

Um caçador caminhava sozinho na floresta. Ele havia passado todo o dia rastreando sua presa, um urso da montanha, e finalmente descoberto onde estava o animal, através das suas pegadas. Quando consegue enfim vislumbrar o urso, o homem dispara seu rifle de forma certeira e o deixa estirado no chão da floresta, inconsciente. Sua mira irretocável e sua prática extensa lhe permitem abater o animal instantaneamente e, cautelosamente, o caçador se aproxima para certificar-se de ter tido sucesso.

Ele não percebe, porém, a presença de outro urso da montanha, maior do que o primeiro, que o desarma rapidamente e lhe deixa indefeso de uma hora para outra.

Então, o novo urso fica em pé em suas patas traseiras e lhe pergunta:

-O que você está fazendo?
-Ei! Você é um urso que fala!
-Sou.
-Olha, eu sinto muito por ter atirado nesse urso, você não precisa me matar por isso. Eu não sabia que vocês podiam falar e...
-Na verdade, ele não podia. Esse era o meu irmão menor, ele era um cara normal. Nunca criou nenhuma dificuldade para ninguém e era muito discreto, as pessoas nunca reparavam muito nele...
-Sinto muito.
-Tudo bem, e eu também não quero matar você. Na verdade, eu não vou me importar se sair daqui vivo, mas se você quiser isso, preciso que faça uma coisa.
-Certo, eu faço qualquer coisa!
-Você precisa me dar o cu.
-O quê? Você não pode estar falando sério. Eu não posso te dar o cu, você é um urso, isso iria me matar. Além disso, como eu vou contar pra alguém que eu, um caçador de ursos, tive o cu comido por um urso e depois mandado pra casa? Mesmo assumindo que alguém acredite nisso, seria vergonhoso!
-Você vai descobrir que caçar significa se revezar entre orgulho e vergonha o tempo todo. Você teve o seu momento quando matou meu irmão, fez coisas desse tipo várias vezes e sempre saiu ileso, mas não agora. Estou te dando uma alternativa diferente de pagar com sua vida.
-Isso é loucura! Nunca aconteceu nada desse tipo com meus amigos caçadores...
-Bom, eles devem ser melhores nisso do que você. Chega de conversa, está na hora de escolher.

Relutante, o caçador concorda com os termos do urso e consegue voltar para casa. O homem havia, no entanto, jurado caçar e se vingar daquele animal, e no ano seguinte retorna à floresta e consegue encurralá-lo e matá-lo.

Contudo, ele não contava que, mais uma vez, um urso da montanha apareceria inesperadamente no local e lhe tiraria o rifle das mãos, o cercando.

E o novo urso faz uma saudação:

-Você de novo.
-Droga! Eu sempre acabo encontrando um urso falante. Nem mesmo tive tempo para sentir alívio.
-Deve ser difícil, mas você não prefere assim? Não é bem melhor quando seus obstáculos falam com você? Quando se preocupam em te explicar o motivo pelo qual você precisa lidar com dificuldades que todos os outros não têm?
-Claro, acho que sim. Me desculpa por ter matado o urso, eu precisei fazer isso para me sentir melhor e seguir em frente, para que eu pudesse ser quem eu quero ser, sem precisar pensar mais nisso.
-Eu entendo. Esse era o meu irmão menor, ele sempre repeliu e puniu todos os que caçaram em seu território, mas nunca tinha encontrado ninguém disposto a voltar, encará-lo e vencê-lo. Alguns simplesmente desistem de ir em frente, eu acho.
-Então está tudo bem? Eu posso ir embora?
-Claro, está tudo bem e você pode ir embora... contanto que me dê o cu.
-Cara, vocês são doentes! Eu nunca pensei que encontraria um urso falante algum dia, muito menos dois ursos, e nunca teria adivinhado que seriam ursos estupradores.
-Sei o que você pensou. Você achou que os ursos eram instrumentos para as pessoas, que não faziam nada além de entreter, de alimentar, de divertir e servir como fonte da sua vaidade, das suas conquistas. Achou que as ameaças que eles poderiam lhe impor estariam sempre distantes de você.
-Você tem razão. Eu estava sendo arrogante, subestimei aos ursos e tenho pago o preço mesmo depois de ter sofrido o trauma. Agora eu sei valorizar o que tem valor, mas sinto que vocês são mais cruéis do que o necessário, e às vezes parece mais brutal passar pelo que eu passei do que simplesmente concordar em morrer.
-Morrer foi uma opção que lhe concederam, muitos escolhem ela. Você tem uma escolha semelhante hoje, e é uma decisão mais difícil, porque eu sou um urso maior, mas pelo menos você já aprendeu o que precisava aprender, pois os ursos não vão passar a agir diferente do que têm feito até agora.

Novamente, o caçador consegue voltar para casa, mas não tinha nenhuma intenção de começar a caçar em outro local que não fosse aquele. Seis meses depois, ele está novamente naquela floresta, onde ainda existiam questões a serem resolvidas, e depois de caçar e atirar no último urso com quem havia conversado, o homem não fica surpreso em notar a presença de um outro urso, ainda maior do que os três primeiros, poucos passos atrás.

-Olá, caçador.
-Oi. Deixa eu adivinhar. Esse urso que acabei de matar era seu irmão menor, e você veio aqui para meter no meu cu, logo depois de me dar alguma lição...
-Sim, esse urso era meu irmão menor, e sim, eu vim para meter no seu cu, mas a lição só virá depois disso e não sou eu quem vai ensiná-la. Você aprende a lição sozinho, ou pelo menos deveria aprender.
-Deveria? Você está dizendo que eu ainda não entendi porque essas coisas continuam acontecendo?
-Estou dizendo que você insiste em voltar aqui toda vez, não importando o quão piores as coisas fiquem para você. Os outros ursos já estão dizendo que você não vem aqui só para caçar...
-E qual escolha eu tenho? Eu não quero desistir e não quero morrer, e tentar qualquer outra coisa não pareceria certo, pois eu já coloquei tudo que podia nisso. As vezes você pega uma estrada sem saber direito onde ela vai, mas torce para que lhe leve ao seu destino, e cada vez mais você adentra em sua própria escolha e voltar atrás se torna uma opção inviável, por mais que você pareça nunca chegar aonde precisa, que pareça não chegar à lugar nenhum.
-Você chegou até a mim, e aos outros ursos antes disso. Pode ser um sinal de que esta é a estrada errada.
-Pode ser. Sabe, é engraçado. Na primeira vez em que eu estive aqui, me perguntei porque isso tinha que acontecer logo comigo, quando provavelmente nenhum outro caçador precisou lidar com nada disso. O urso daquela vez me respondeu que eles eram caçadores melhores, e eu estava pronto para acreditar nisso na época, mas não penso assim agora.
-E o que você acha agora? Acha que apenas não tem nenhuma sorte ou nenhuma culpa? Acha que não existe mérito em estar à frente ou para trás em relação aos outros?
-Acho que, mesmo que eu tivesse responsabilidade por tudo que aconteceu, não precisa significar que os outros são melhores do que eu sou. Eu aprendi coisas que todos os outros não aprenderam, os que ficaram para trás e os que seguiram em frente, eles podem muito bem não saber sobre os ursos falantes e nem nada que se aprende através deles. Estou dizendo que agora existem coisas sobre as quais eu vou saber sozinho e seria diferente se tivesse acontecido diferente, e talvez não fosse melhor.
-Você está dizendo que a estrada mais longa pode ser a melhor estrada. Talvez você saiba mesmo mais coisas agora, mas suas decisões não se tornaram melhores, elas nem mesmo são diferentes entre si. Persistir só é uma virtude quando não se está persistindo em fracassar.
-E esse vai ser o ensinamento que vou levar daqui hoje. Vocês também ficam mais sofisticados cada vez que volto aqui. Eu parei de reparar na presença dos ursos que não agregam para mim, acho que não consigo mais escutar ao que não me ensinam. Pelo menos eles são menos dolorosos de enfrentar...
-Seus esforços resultam em dor porque você se coloca nessa posição, e precisa lidar com as consequências inerentes às suas escolhas. Honestamente, eu não tenho interesse nenhum em comer o seu cu. Cara, eu sou um urso, e além disso eu sou hétero, mas me recuso a sentir qualquer coisa, boa ou ruim, sobre o que está prestes a acontecer.
-Eu sei disso. Sei que não está na sua natureza se importar, e que sou eu quem preciso. Sei também que preciso fazer minha escolha agora.
-Você está pronto?

Ele estava.

Enquanto se preparava para pagar sua passagem de volta para casa, o caçador não conseguia parar de pensar sobre as coisas que precisaria fazer para que pudesse finalmente retornar à floresta, dali a um mês. Ele pensava sobre quais ferramentas teria que conseguir para si, sobre as trilhas que precisaria seguir e o cansaço que teria que superar, e pensava sobre a força de vontade que precisaria exercer.

Pensava serem estas as coisas que definem um caçador.


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